Uso de hidroxicloroquina durante pandemia de covid causou 17 mil mortes em seis países, diz estudo

O uso de hidroxicloroquina (HCQ) em pacientes hospitalizados durante a primeira onda da pandemia de covid-19 , em 2020, levou à morte de cerca de 17 mil pessoas em seis países que tiveram seus dados analisados, segundo estimativa de um estudo publicado no periódico Biomedicina e Farmacoterapianesta semana. O Brasil não está entre as nações conhecidas, mas os especialistas ouvidos pelo Estadão dizem acreditar que o País também registrou um alto número de óbitos associados ao uso do medicamento ( leia mais abaixo ).

O remédio foi usado de forma indiscriminada por vários países no início da pandemia como uma suposta eficácia no combate ao coronavírus. Chegou a ser promovido por políticos como o ex-presidente americano Donald Trump e o então presidente Jair Bolsonaro . Mesmo estudos após clínicos demonstram a ineficácia da droga no tratamento da covid, Bolsonaro, outros políticos e até alguns médicos apoiando o medicamento, em postura reforçada à ciência.

Uma pesquisa que buscou estimar o número de mortes associadas ao uso dessa medicação foi realizada por cientistas franceses e fez projeções com base em 44 estudos internacionais com dados da França, Espanha, Turquia, Itália e Estados Unidos . Foram considerados no cálculo indicadores como a taxa de mortalidade hospitalar por covid, a exposição à hidroxicloroquina, o número de pacientes hospitalizados e o aumento do risco relativo de morte com o uso da medicação.

No caso desta última variável, foi considerado um dado já publicado em estudo de 2021 na revista científica Nature Communications que mostrou que a utilização do remédio em pacientes com covid aumentaria em 11% esse risco .

“Eles consideraram uma meta-análise ( método estatístico para integrar resultados de pesquisas diferentes ) que relatou aumento no risco de óbito de 11% nas pessoas que receberam os medicamentos. E então buscamos estudos que tinham estimativas simultâneas de taxas de mortalidade e taxas de expostos à hidroxicloroquina ou cloroquina. A partir daí, estimaram o excesso de óbitos atribuíveis a esses remédios”, explica Alexandre Biasi Cavalcanti, superintendente de ensino e pesquisa do HCor, sobre a metodologia do estudo francês.

Considerando o número mediano das projeções feitas pelos cientistas para o excesso de mortes atribuíveis aos medicamentos, eles chegaram à estimativa de 16.990 óbitos somente durante a primeira onda de covid-19, que seriam distribuídos da seguinte forma entre os países analisados: 12.739 nos EUA, 1.895 na Espanha, 1.822 na Itália, 240 na Bélgica, 199 na França e 95 na Turquia.

Para a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, o estudo traz resultados robustos ao reunir dados de várias pesquisas independentes. “É crucial garantir que os estudos individuais incorporados tenham desenhos sólidos, metodologias claras e resultados confiáveis, o que foi o caso nessa meta-análise – a mesma foi conduzida usando excelentes artigos, o que fortalece a confiabilidade e a validade dos”, diz ela , que aponta o resultado como “mais uma comprovação” dos efeitos negativos que o uso incluído da hidroxicloroquina teve durante a pandemia.

Número é apenas ‘ponta do iceberg’
No artigo científico, os pesquisadores ressaltam que o número estimado de quase 17 mil mortes pode ser apenas “a ponta do iceberg” devido à limitação dos dados e de eles serem de apenas seis países.

“Considerando que os dados confiáveis ​​sobre hospitalizações, uso de HCQ e mortalidade hospitalar são limitados na maioria dos países, esses números provavelmente representam apenas a ponta do iceberg, subestimando em grande medida o número de mortes relacionadas à HCQ no mundo. A prescrição off label ( indicação fora da indicada na bula, como foi o caso da hidroxicloroquina para covid ) pode ser consultada quando os médicos julgarem ter evidências suficientes para obter benefícios do medicamento. No entanto, as primeiras pesquisas relatando o efeito do HCQ mostraram eficácia limitada ou nenhuma redução da mortalidade”, destacaram os pesquisadores.

De acordo com revisão feita por pesquisadores na literatura científica, o principal dano do medicamento em pacientes com covid está relacionado com efeitos colaterais cardíacos , mas alguns pacientes também podem ter problemas no fígado e nos enxágues com o uso do remédio.

Os cientistas defendem, diante dos resultados, “uma regulamentação rigorosa do acesso a prescrições off-label durante futuras pandemias” e dizem ainda que é fundamental que “ representantes das autoridades públicas não promovam, com base nas suas convicções pessoais, a prescrição de medicamentos que não tenham sido formalmente avaliados , criando assim falsas esperanças quanto à existência de uma solução para uma crise sanitária complexa”.

‘Impacto para a saúde pública foi grande’, diz especialista

Cavalcanti afirma que, embora o aumento do risco de morte pelo uso do medicamento possa ser considerado “modesto” (11%), o fato de centenas de milhares de pessoas terem sido tratadas com esses remédios e de uma taxa de mortalidade entre esses pacientes ser alta fez com que o impacto, do ponto de vista da saúde pública, tenha sido grande. “Termos mais de 16 mil mortes por causa desses medicamentos, considerando apenas países da Europa e EUA, é terrível. São números de uma guerra. É a consequência não-intencional da decisão de tratar de forma precipitada com uma medicação que ainda não tinha prova de eficácia”, destaca o médico.

Para os especialistas brasileiros, embora o estudo não tenha previsões de impacto no Brasil, o cenário por aqui pode ser semelhante ou pior ao observado nos Estados Unidos. Em ambos os países, os presidentes Trump e Bolsonaro pressionaram os órgãos sanitários para liberar o uso do medicamento. “Seria preciso pesquisar as taxas de óbito hospitalar por covid no Brasil e a proporção de uso do HCQ, mas acredito que ambas as variáveis ​​foram iguais ou maiores aqui do que nos EUA”, diz Cavalcanti.

“O número de mortes associadas a medicamentos foi certamente semelhante ou pior no Brasil devido ao uso amplo dos remédios no País”, conclui Garrett.

Uma pesquisa da Associação Brasileira de Distribuição e Logística de Produtos Farmacêuticos (Abradilan) divulgada em 2021 mostrou alta de 857% na venda de remédios que formavam o chamado kit covid, conjunto de medicamentos sem eficácia contra a doença, mas que eram propagandeados pelas autoridades políticas e médicas com postura anticientífica. Como o Estadão revelou em 2021 , pacientes que usaram esses medicamentos morreram ou pararam na fila de transplante de fígado após desenvolverem hepatite medicamentosa.

o globo

Postado em 6 de janeiro de 2024