Pesquisa desfaz a ideia de que, no amor, os opostos se atraem

Vem da mitologia grega a ideia de que uma figura como Eros, rebatizado de Cupido nos tempos romanos, escolhia a esmo pessoas que se encantariam umas pelas outras depois de flechadas por ele, o Deus encarregado do amor e da paixão, que tinha lá seus caprichos. Quando dava na telha, usava sua ferramenta de trabalho para promover combinações que desembocavam em pura desilusão. Estava ali embutido um conceito que viria a ganhar envergadura na era medieval — a do amor romântico, em que uma metade completaria a outra, numa fusão de porções diferentes que formariam um todo harmonioso. A lei da física que trata da atração magnética entre dois corpos eletricamente carregados examinou o tópico sob outra lupa — segundo ela, a força que aproxima dois objetos é sempre mais intensa quando eles contêm cargas opostas. Nos anos de 1950, o sociólogo americano Robert Winch enlaçou o raciocínio em um enunciado repisado até os dias de hoje: “Os opostos se atraem”, cravou em artigo publicado na American Sociological Review.

Agora, esse caldo feito de tão variadas leituras ganha nova luz depois de uma vasta pesquisa conduzida por psicólogos da Universidade do Colorado, recém-publicada no respeitado periódico Nature Human Behavior. Em uma ambiciosa empreitada, em que os especialistas aplicaram um mesmo formulário a 80 000 pessoas mundo afora, Brasil incluído, chegou-­se a uma constatação que derruba o velho ditado: 89% dos entrevistados, engatados em relacionamentos sérios e felizes, segundo afirmavam, mantinham muito mais similaridades do que diferenças com seus parceiros.

Foram examinados ao todo mais de uma centena de itens — de hábitos a crenças religiosas, de escolaridade a personalidade e valores, abrangendo a postura frente à vida. Em geral, os que eram mais abertos ao novo, por exemplo, mantinham em dupla a curiosidade que os levava a percorrer inúmeras trilhas juntos. “Descobrimos que as pessoas vão ativamente atrás de quem compartilha semelhanças com elas, uma procura que é facilitada pelo fato de, não raro, estarem inseridos no mesmo contexto social”, disse a VEJA o americano Jared Balbona, um dos autores do estudo.

Um mergulho às raízes da psicanálise mostra que o primeiríssimo exemplo de afeto e amor vem de casa e se reflete em graus distintos ao longo da existência. “A forma como a criança é cuidada e a dinâmica dos elos estabelecidos pelos pais ficam marcados no inconsciente, sem que ele perceba, e influencia suas escolhas amorosas na idade adulta”, afirma a doutora em psicanálise Ana Suy, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com o próprio Sigmund Freud (1856-1939), que fincou os pilares da teoria, o amor contém uma camada de narcisismo, uma vez que os enamorados sempre veem um pouco de si mesmos em seus pares. “Não escolhemos os outros ao acaso, mas encontramos aqueles que já existem em nosso inconsciente”, escreveu o pai da psicanálise.

O estudo americano atiça um debate que, como outros que mexem com a condição humana, revela variadas nuan­ces. Ele sustenta que semelhanças, sobretudo no campo dos valores — visão de família, ética de trabalho, relação com dinheiro —, ajudam a firmar laços sólidos. Mas as inevitáveis diferenças que se pronunciam no dia a dia também contêm uma riqueza que engrandece o convívio e são, portanto, desejáveis. “Ser igual em tudo pode quebrar o encanto”, resume Ana Suy. Existe, no entanto, um limite para o fosso que às vezes separa um casal. “Conflitos são naturais, porém, quando as diferenças são tantas e é preciso negociar sobre absolutamente tudo, a situação acaba se tornando insustentável”, lembra a psicóloga Marta Souza, terapeuta de casais. Os estudantes de jornalismo Kezya Paiva e João Pedro Sabadini (ambos de 22, começando aí as similaridades) se conheceram na faculdade e contam que tiveram uma criação parecida, no interior, o que acabou por aproximá-los. “Nossas origens ajudam a explicar nossa forma de pensar em várias áreas”, avalia João Pedro.

A neurociência também se deteve sobre a lógica da atração humana, examinando o que se passa no cérebro quando dá o match, aquele clique que une duas pessoas. Já é bem sabido que a conexão não é produto de uma química aleatória: a efervescência observada na mente é fruto da identificação de qualidades mapeadas no outro que despertam sensação de familiaridade. A paixão, o amor — esses são sentimentos que logo põem em marcha os neurônios que atuam no chamado sistema de recompensa, regulado principalmente pela dopamina, que proporciona prazer. “Quando esbarramos com alguém que apresenta muito em comum conosco, os disparos neste sistema são ainda mais intensos”, esclarece o neurologista Ricardo Afonso, diretor do Instituto do Cérebro de Brasília.

Uma pesquisa realizada pela Universidade de Boston rastreou um mecanismo adicional no elétrico circuito dos encontros. “Ao estar frente a frente com um indivíduo que dê sinais de cultivar gostos parecidos, a tendência é logo achar que ele compartilha uma visão de mundo igual à sua, tomando a parte pelo todo”, alerta o psicólogo Charles Chu, autor da investigação, que serve de ponderação: só mesmo o convívio vai indicar se o par, na alegria ou na aridez do cotidiano, nutre mesmo tantas afinidades essenciais à longevidade da parceria.

Muitas vezes, hobbies e hábitos que satisfazem a ambos são descobertos e alimentados na convivência, como ocorreu com o casal de farmacêuticos Cleide e Paulo Freitas, 55 e 60 anos, respectivamente, já com três décadas de estrada. De cara, tiveram diante de si pelo menos um indício de que algo os unia: devoradores de livros, ambos liam Anna Kariênina, de Tolstói, num retiro de Carnaval. “A conexão foi instantânea”, diz Cleide, que, com o marido, sedimentou novos gostos com o tempo. Evidentemente que o mundo dos afetos não é regido por fórmulas matemáticas e nele cabe de tudo, inclusive a atração dos opostos. O que importa, lembram os especialistas, é que a relação se desenrole sobre bases saudáveis, em que a solidão — um mal da civilização moderna que a Organização Mundial da Saúde acaba de classificar como epidemia (leia abaixo) — saia verdadeiramente de cena.

Só, e bem acompanhado

Se você se sente solitário, não está sozinho. Este é um mal que vem acometendo a civilização em escala planetária — de acordo com uma recente pesquisa do Instituto Meta Gallup, que investigou 142 países, um de cada quatro adultos revela solidão em graus de moderado a elevado. O sinal de alerta acaba de ser aceso pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que classificou o problema como prioridade de saúde global e anunciou a criação de uma comissão com o objetivo de travar um duelo contra esta “ameaça urgente” que se apresenta na forma de “epidemia”. A ideia é traçar estratégias para ajudar os indivíduos a aprofundarem os laços sociais e partirem rumo a novas conexões, algo que a roda da sociedade moderna — acelerada e atada ao universo das redes — compromete em alto grau. “Diante das consequências sociais e à saúde provocadas pela solidão, temos a obrigação de investir com o mesmo vigor em seu combate que dedicamos ao uso de tabaco, à obesidade e à dependência ligada a vícios variados”, enfatiza o médico Vivek Murthy, integrante da comissão da OMS e porta-voz do governo americano para assuntos de saúde.

A ciência já se encarregou de mapear os males provocados pela sensação de isolamento, quando se olha em volta sem encontrar um ouvido com quem compartilhar os altos e baixos da existência. O solitário, segundo estudos, tem maior propensão a registrar disfunções no sistema imunológico e cardiovasculares, como hipertensão, e seu risco de acidente vascular cerebral sobe 30%. No terreno dos hábitos, quem se vê só tende a alimentar uma rotina menos saudável, com índices de consumo de álcool e sedentarismo acima da média. Uma pesquisa da própria OMS, que pesou o quanto todos esses fatores prejudicam o bem-estar, chegou à conclusão preocupante: os malefícios da solidão correspondem ao consumo diário de quinze cigarros.

Existe um termômetro que ajuda a dar a medida da solidão, mesmo sendo tão subjetiva. “Ela pode ser entendida de forma simples, como a diferença entre o número e a qualidade dos relacionamentos que alguém almeja e os que realmente tem”, explica a psicóloga Olivia Remes, especialista em saúde mental da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O ponto central não é exibir uma rede de 1 000 amigos nem tampouco estar envolvido em um relacionamento de pouca troca e significado. “Há muita gente por aí sozinha no meio da multidão”, resume. Vale ainda um lembrete do psicanalista francês Jacques Lacan (1906-1981): a trilha antissolidão não passa necessariamente pelo elo com o mundo exterior, mas pela busca do que desperta “o imaginário e o simbólico”, encontrando interesses genuínos e renovadores do espírito. É quando a pessoa está sozinha, sim, mas muito bem acompanhada.

VEJA

Postado em 27 de novembro de 2023