‘Me incomoda o título de primeira-dama, porque não é isso que me define’, diz ativista Graça Machel, que foi casada com Mandela

Considerada uma das mais importantes ativistas africanas, Graça Machel é muitas em uma só. Foi professora e guerrilheira, quando lutou com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) durante a luta pela independência de Moçambique, onde nasceu, em 1945. Foi também ministra da Educação do governo do presidente Samora Machel, seu então marido, por 14 anos. Após a morte de Machel, em 1986, em um acidente de avião até hoje questionado, continuou a sua atividade política e criou uma organização sem fins lucrativos, a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade. Em 1990, foi nomeada pelo secretário-geral da ONU como especialista independente para avaliar o impacto dos conflitos armados nas crianças. Seu relatório, o Relatório Machel, estabeleceu uma agenda nova e inovadora para a proteção de crianças envolvidas em guerras, mudando a política e a prática de governos, das agências da ONU e da sociedade civil internacional.
Em 1998, aos 53 anos, casou-se com Nelson Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul, símbolo da luta contra o apartheid — título pelo qual é lembrada até hoje. Defensora da valorização das comunidades, em 2010 fundou ainda a Graça Machel Trust, ONG que auxilia mulheres empreendedoras no continente africano. E, desde 2018 , também é vice-presidente do The Elders, grupo que reúne grandes líderes globais, ao lado do ex-secretário-geral da ONU Ban Ki Moon.

Prestes a completar 78 anos, Graça Machel continua sendo muitas. Em entrevista exclusiva ao GLOBO durante sua participação no Rio Innovation Week, quando foi aplaudida de pé, Machel falou sobre os atuais desafios de seu ativismo na luta pela igualdade de gênero, sobre racismo no Brasil e sobre o título de primeira-dama de Moçambique e da África do Sul. “Sou ativista e é assim como eu sou conhecida, não só nesses dois países, mas no mundo”. Ela também celebrou o Prêmio Nobel da Paz concedido à ativista iraniana Narges Mohammadi no mês passado: “Ela está fisicamente presa, mas é uma mulher livre, que não cabe nas paredes da cela onde está.

Como o papel das mulheres na luta armada na Frelimo influenciou sua perspectiva sobre os direitos das mulheres?

Um dos grandes segredos do sucesso da Frelimo na luta pela independência foi ter compreendido muito cedo que as mulheres tinham que estar presentes em todas as frentes, incluindo a frente de luta armada. Que as mulheres não deviam estar presentes apenas para apoiar, mas que tinham que estar no treinamento, no combate, na educação, na administração. As mulheres foram integradas em todos os setores e isso sacudiu o meu entendimento sobre a igualdade de gênero. A igualdade não é uma teoria, é preciso colocá-la em prática. E a Frelimo ensinou a nós, mulheres, a assumirmos as nossas responsabilidades em todas as experiências, e por isso aprendemos a ser iguais.

Quais foram os desafios e as pressões que a senhora enfrentou como mulher do presidente Samora Machel e como isso influenciou suas próprias visões de mundo?

O primeiro desafio foi ter sido ministra da Educação aos 28, quase 29 anos, sem nenhuma experiência de liderança. Para mim foi um choque, mas também foi a expressão de um voto de confiança nas minhas potencialidades. O segundo aspecto é que eu era a única mulher no Conselho de Ministros e o presidente desse conselho era meu marido. Então eu tinha que me posicionar como uma entre todos eles, mas ao mesmo tempo ter consciência de que precisava manter a distância e nunca olhar para o presidente Samora como meu marido, mas sim como chefe do meu governo.

E sendo a única mulher no governo, eu sabia que todas as mulheres moçambicanas iriam ser julgadas através da minha performance. Se eu fizesse um bom trabalho toda a sociedade acreditaria nas mulheres; se eu não fizesse, toda sociedade diria: ‘demos uma oportunidade às mulheres e elas não aproveitaram’. Foi uma experiência muito desafiadora do ponto de vista pessoal. E, olhando para trás, considero que consegui resultados positivos porque me cerquei de pessoas que tinham mais conhecimento do que eu, que tinham mais experiência, e trabalhamos coletivamente. Isso me enriqueceu e me ensinou a liderar equipes. Tivemos alguns dos resultados que são considerados ainda hoje como os melhores do primeiro governo do país.

A senhora é a única mulher que foi primeira-dama duas vezes no mundo. Como essa experiência influenciou seu ativismo? Esse título lhe incomoda?

Definitivamente me incomoda, porque não é isso que me define. E a Graça que eu sou não é aquela que foi a primeira-dama. Em Moçambique, na verdade não trabalhei como primeira-dama, mas como ministra da Educação. Quando eu deixei o governo, as pessoas continuaram a me tratar como ministra, nunca como primeira-dama. Foi a minha presença no governo que me definiu como pessoa e não o meu casamento. Em relação à África do Sul, me casei com Mandela pouco tempo antes de ele deixar de ser presidente, portanto não quis me envolver a fundo nas questões como primeira-dama. Eu já tinha uma longa carreira como ativista social, já tinha até trabalhado para as Nações Unidas. Tinha o meu próprio trabalho e meu espaço muito bem consolidados e me mantive ali. Os sul-africanos me tratam como mãe, não como primeira-dama. Porque foi isso mesmo que eu fui: continuei trabalhando com mulheres, jovens e crianças. Sou ativista e é assim como eu sou conhecida, não só nesses dois países, mas no mundo.

Narges Mohammadi, ativista da luta por direitos da mulher no Irã, ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Qual a importância desse prêmio na luta pelos direitos das mulheres?

Estou empolgada e orgulhosa pelo reconhecimento que está sendo dada a ela. Sua história e sua participação na luta por direitos humanos não têm paralelo. Poucas pessoas passaram pela confrontação e ao mesmo tempo persistiram, não se vergaram. Ela hoje está na prisão, mas é naturalmente um dos espíritos mais livres que existem. Está fisicamente presa, mas é uma mulher livre, que não cabe nas paredes da cela onde está. Por isso, todas nós mulheres e homens progressistas do mundo celebramos esse prêmio como a vitória da coragem, da determinação e da persistência.

Promessa de campanha, o presidente Lula costuma dizer que a retomada das relações entre Brasil e o continente africano é “uma reparação histórica, uma obrigação humanitária”. Como a senhora vê a responsabilidade do Brasil nesse sentido?

Lula está sendo muito verdadeiro com a sociedade brasileira, em primeiro lugar. Se este país tem quase 56% da população com sangue preto, porque são pretos ou pardos, Lula tem obrigatoriamente que reconhecer que há uma ligação, que não é apenas histórica mas de sangue, com a África. O fato de Lula tomar iniciativas arrojadas para se reconectar com a África é um reconhecimento de que há uma relação de um passado comum, que só vai nos enriquecer se continuamos trabalhando juntos agora, no presente e no futuro. Esse é o primeiro aspecto. Em segundo lugar, o Brasil está entre as dez economias mais poderosas no mundo. Portanto tem um papel no contexto global, de relevo. E olhando para o futuro da família humana hoje só faz sentido o Brasil se conectar, por exemplo, à Ásia e à África porque esses são os continentes do futuro. E o futuro do Brasil tem que estar onde estão as maiores oportunidades de um futuro comum. É por isso que ele está estreitando as relações dentro dos Brics, mas particularmente dando uma importância à África. Ele está mostrando um comprometimento com o futuro, onde esse futuro reside. E está sendo um bom presidente para os africanos.

O Brasil é o país que mais recebeu escravizados no mundo, e hoje ainda lida de maneira incipiente com o seu racismo. O que ainda precisa ser feito?

Sei que aumentou o número de pessoas negras neste governo, e foi criado o Ministério da Igualdade Racial. Essas ações deliberadas que instituem e institucionalizam mudanças na sociedade são extremamente importantes e vão fazer a mudança. É verdade que essa mudança ainda é incipiente, porque está sendo feita só agora, em 2023, quando deveria ter começado há muito tempo. Mas acredito que são ações pertinentes e estruturantes. O espaço parece estar mais aberto do que nunca, e nós como cidadãos devemos aplaudir essas ações mas também devemos dizer que é preciso fazer mais, porque é possível fazer mais.

Nós temos que ajudar a traçar uma agenda, que não é do governo, mas tem que ser da sociedade. Principalmente porque sabemos que no Congresso essas mudanças estão sendo combatidas porque nem todos acreditam na igualdade racial e das mulheres, e vão fazer tudo para frustrar as iniciativas do governo. Por isso, só poderemos fazer mais com um total apoio da sociedade, da imprensa. Vocês têm que ter uma agenda clara também. Como vocês promovem a igualdade das mulheres e racial? Como os preconceitos são combatidos hoje? Vocês, como imprensa, têm um privilégio porque entram nas casas de todos. Todos nós temos responsabilidades, intelectuais, organizações da sociedade civil, do setor privado. Cada um de nós tem que ter a sua forma de contribuir e eu acredito que, em quatro anos, o Brasil pode mudar muito.

O GLOBO

Postado em 27 de novembro de 2023