Longevidade: as novas descobertas da ciência para viver mais e melhor

Reza a lenda que o Japão nasceu no longo século III aC, quando o então imperador chinês despachou uma expedição em alto-mar com o objetivo de encontrar a fonte da imortalidade. O alquimista e comandante da ambiciosa empreitada, Xu Fu, levou a bordo milhares de crianças até três montanhas sagradas para suplicar aos deuses que lhes concederam o elixir da vida eterna. Sem ser atendido, Xu jamais retornaria à terra natal, fincando bandeira, ao lado de seus jovens companheiros de jornada, em um arquipélago do Pacífico onde hoje se situa o território japonês. Pois o país que teria emergido da ânsia humana em vencer a finitude sabia, à base de uma combinação de hábitos saudáveis ​​e avanços notáveis ​​no campo da medicina, esticar a existência como nenhuma outra nação do planeta. Segundo um relatório recém-divulgado, Quase um de cada três habitantes ali cruzou a fronteira dos 60 anos e 10% já contam oito velinhas sobre o bolo. É um marco inédito, mas não desprezado da realidade global. A população mundial envelhece em passo acelerado, compondo um contingente que configura as características demográficas mais extraordinárias do século XXI.

O mais fascinante no prolongamento da vida observado em nossa era é que ele, não raro, vem conectado a um elevado bem-estar — as pessoas não estão apenas comemorando aniversários em série, como muitos o fazem com entusiasmo, cercadas de planos e afeto. A ciência já decifrou as raízes do envelhecimento, processo que resulta do acúmulo gradual de danos celulares, levando à perda de capacidades e ao aumento do risco de doenças. O corpo, tal qual uma máquina, se desgasta com o uso.

A trilha percorrida agora pelas autoridades maiores no tema se volta justamente para os caminhos para frear os efeitos da passagem do tempo, o que envolve descobertas valiosas no terreno da engenharia genética. “O grande desafio é aprender como redesenhar a biologia humana, reprogramando células para trabalhar a favor da saúde, o que começa a acontecer”, diz o biólogo João Pedro Magalhães, da Universidade de Birmingham, no Reino Unido. A transferência de genes de uma célula para outra já pode turbinar, por exemplo, a defesa do organismo de um paciente com câncer, técnica já empregada inclusive no Brasil. “A medicina personalizada, capaz de chegar a tratamentos baseados na genética de cada um, é promissora”, disse a VEJA o israelense Aaron Ciechanover, dono de um Nobel de Química.

O saber acumulado sobre o envelhecimento também revela que o cultivo disciplinado de bons hábitos é essencial para a longevidade. Há certo consenso de que a genética responde por 20% da expectativa de vida, enquanto os outros 80% são definidos pelo ambiente e por escolhas feitas no dia a dia. O pesquisador americano Dan Buettner decidiu investigar quais são essas opções que se desdobram na vida longa. Para isso, foram esses pontos do globo com a mais alta concentração de centenários — as chamadas zonas azuis . Passou duas décadas dissecando a rotina nesses locais, o mais vasto trabalho de campo realizado em área que tanto intriga especialistas e leigos. Além de sete livros, produzidos o bem sucedido Como Viver até os 100 — Os Segredos das Zonas Azuis, série da Netflix que entrou para o rol das dez mais assistidas. “O percurso para uma existência longa e saudável não é de curta distância, mas uma maratona embalada por práticas de segurança adotadas desde os 40, 50 anos”, disse Buettner a VEJA.

Sua primeira parada no roteiro dos centenários não chega a surpreender — foi a cidade de Okinawa, que fica no sul do Japão e ostenta 81 deles a cada 100 mil habitantes, quatro vezes a média nos Estados Unidos. O circuito incluía ainda a ilha grega de Ikaria, a Sardenha, na Itália, a cidade californiana Loma Linda e Nicoya, na Costa Rica. São lugares culturalmente bastante distintos, mas que abraçam, cada qual a seu modo, uma rotina que contém inúmeras semelhanças.

Em todos esses cantos do planeta, os idosos mantêm conexões sociais sólidas — em Okinawa, Buettner esbarrou com os moais , grupos de amigos que firmaram laços eternos. Suas conversas também deixaram bem claro que os longevos são guiados por algum propósito (voluntariado, leitura), ou que os costa-riquenhos de Nicoya apelidam de plano de vida . Os campeões em longevidade não são exímios atletas, mas estão em constante movimento, seja caminhantes, seja cultivando a terra ou se envolvem em trabalhos manuais. Aos 83 anos, a energética Maria Amélia Pascoa, que trocou Portugal pelo Brasil há seis décadas, relata: “Não largo meu orquidário, um tesouro que plantei no terraço de casa e me deixa estimulada e ativa”.

O capítulo da alimentação é outro que ajuda a contar a história desses idosos mais velhos — os mais velhos na população já idosa. Nas zonas azuis, mais de 60% do cardápio é composto de itens de origem vegetal, principalmente feijão, soja e lentilha. Nenhum dos centenários ouvidos faz dieta, a rigor, mas sustentam o bem-vindo hábito de encerrar a refeição quando se sentem saciados, sem nunca se empanturrar. “Em geral, as pessoas comem mais do que precisam, o que sabidamente acelera o envelhecimento”, alerta Eric Ureña Sala, do Instituto de Envelhecimento Saudável da University College London.

Neurocientistas da Universidade de Madri tentaram desvendar o enigma da longevidade observando mais de 1 000 homens e mulheres que ultrapassaram os 80 anos com uma idade biológica de adultos de 50. Uma pesquisa, publicada no prestigiado Lancet Healthy Longevity, assinala que eles possuem mais massa cinzenta em regiões-chave do cérebro. Os autores confirmam que a genética contribui, sim, mas sustentam que suas experiências de vida tiveram o mesmo peso em prol desse retrato tão privilegiado de mentes envelhecidas. Ao mergulhar na rotina do grupo, constatou-se que eles preservaram os laços de amizade, nunca pararam de aprender, aderiram à atividade física desde cedo e dormiram bem. “Escrevo poesia, pinto, gosto de conversar e não posso ficar sem saber o que está acontecendo no mundo”, conta o elétrico aposentado Ricardo Giordani, de 93 anos, que mora sozinho.

Já está provado que o ambiente à volta das pessoas pode funcionar como alavanca poderosa à vida longa. “A forma como as cidades se organizam ajuda as pessoas a viver bem por mais tempo”, enfatiza Buettner. Um caso exemplar de lugar pensado para estimular os idosos é Singapura, uma zona azul onde a evolução alcançou impressionantes 83,2 anos. Não é obra do acaso. Ali, os pedestres têm total preferência, uma vez que os salgados impostos sobre carros e gasolina foram aplicados em um robusto sistema de metrô. Resultado: a vida é a pé. Além disso, o governo subsidia alimentos saudáveis, que saem mais em conta, e fornece incentivos fiscais aos filhos que moram perto dos pais, para que se sintam menos sós. No Brasil, a cidade número 1 em idosos é Veranópolis, a 170 quilômetros de Porto Alegre, que chamou a atenção nos anos 1990 por apresentar expectativa de vida dez anos maior que a mídia nacional. Um bom empurrão veio de uma parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), que desembocou em um plano para a turma de cabeça branca — da adequação das calçadas para evitar quedas à formação de grupos de convivência em que fortes vínculos sociais fossem estabelecidos.

Uma questão que atormenta a espécie gira em torno de até quanto, afinal, pode esticar a existência. Um estudo recente, publicado na revista Nature Communications , indica que a vida humana alcança 150 anos — a francesa Jeanne Calment, que morreu aos 122, em 1997, é até agora dona do registro. Outra corrente sugere que o número tende a ser bem mais generoso. “Na teoria, sabemos que é cientificamente possível retardar em boa medida o envelhecimento”, observa o biólogo Magalhães.

Um olhar sobre a história mostra que o Homo sapiens sempre encontra maneiras de driblar o relógio. Na Renascença, quem completou 30 anos pôde se dar por satisfeito. Mas aí surgiram marcos civilizatórios, como o saneamento básico, a produção de alimentos em escala, o desenvolvimento de vacinas e remédios — e assim a expectativa de vida quase quintuplicada em quatro séculos. A mídia atual é de 72,8 anos, e subindo. Atualmente, 1 bilhão de moradores da Terra tem mais de 60 anos, multidão planejada para dobrar até 2050. “A fatia que mais cresce é a que passou dos 80, uma novidade para a qual devemos atentar”, pontua o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves .

A adaptação a um cenário com menos jovens é objeto de debate e políticas públicas, sobretudo na porção mais desenvolvida do globo, que encabeçou a chamada transição demográfica. Ela traz uma realidade em que há menos braços ativos do que crianças e velhos, notícias que começam a afetar o Brasil, com um nó adicional: enquanto os países desenvolvidos acumularam riqueza antes do envelhecimento de sua pirâmide etária, os brasileiros marcharam rumo à mesma situação sem ter atingido um alto grau de bem-estar. Significa um peso sobre os sistemas previdenciários e de saúde e coloca à mesa a necessidade de fazer mais com menos pessoas e prolongar a permanência das pessoas no mercado. Para tal, é preciso haver incentivos — no Japão, quase 15% dos trabalhadores já sopraram setenta velinhas, ou mais. “Se pudesse ser contratada, ainda estaria na ativa. Minha independência é meu bem maior”, diz a professora aposentada Hilda Silveira, 83 anos. Bem resolvida com a idade que tem, ela não se vê alvo de preconceito, como outros de sua faixa, e faz coro com as palavras de Sêneca (4 aC-65 dC), o estoico (e influente) filósofo romano: “Apreciemos e amemos a velhice, pois é cheio de prazer se soubermos como usá-la”.

VEJA

Postado em 30 de setembro de 2023