“Ganhamos voz”, diz irmã no cargo mais alto ocupado por mulher no Vaticano

De seu pequeno escritório no Vaticano, onde prateleiras de livros se erguem ao lado de uma foto do papai Francisco, a irmã Nathalie Becquart lidera uma singela, mas efervescente, transformação na Igreja Católica. Desde que foi indicado pelo pontífice ao mais alto cargo já ocupado por uma mulher na Santa Sé, há dois anos, a subsecretária do Sínodo dos Bispos cruzou mares e continentes com o intuito de produzir um documento de trabalho para guiar a próxima cúpula dos líderes mundiais do catolicismo, em outubro. Publicado no fim de junho, o texto altamente antecipado estabelece o tom da enorme assembleia bienal episcopal, onde 364 membros votantes participam como bússola do futuro da religião — e ele tem, nitidamente, o dedo de Becquart: um dos principais temas é o papel da mulher na Igreja do terceiro milênio. “A questão do gênero é um sinal dos tempos.

No cotidiano, a função da francesa de 54 anos é colher dividendos para as decisões do papai Francisco, compondo em suas viagens um panorama do pensamento dos fiéis ao redor do globo. Ela está à vontade no papel, já que o movimento de base é sua especialidade desde que se tornou freira, em 1995, na Congregação de Xavières. Após o noviciado, Becquart passou a atuar nas periferias multiétnicas de Paris, o que lhe permitiu identificar um ponto nevrálgico do esvaziamento crescente dos templos: a modesta influência das mulheres. “A falta de liderança feminina é uma das grandes queixas da juventude”, afirma ( leia a entrevista). Alçada a diretora nacional de evangelização juvenil da Conferência Episcopal, auxiliau como observadora (ainda sem direito a voto) ao Sínodo dos Bispos de 2018, que tratou da fé das novas gerações. Neste ano, o tema da reunião é a sinodalidade, que, para ela, significa “maior escuta e inclusão pela Igreja de vozes silenciadas” — como a das mulheres.

Desde que iniciou seu papado, há dez anos, Francisco tem encabeçado mudanças discretas, mas de impacto, através de discursos e ações. Sob sua liderança, o número de mulheres que ocupam cargos na Santa Sé e na Cidade do Vaticano aumentou 37%. Pela primeira vez na história, elas podem se tornar membros plenos dos dicastérios, os órgãos de governo da Cúria Romana, antes de serem de cardeais e bispos. Por força desse avanço, em 2021 a freira franciscana Raffaella Petrini foi nomeada secretária-geral do Estado, responsável pelos sistemas de saúde e segurança e pelos museus, principal fonte de renda do Vaticano. “Diferente dos antecessores, Francisco não tem medo de se envolver com as realidades do cotidiano e de tentar, apesar da oposição de vários cardeais, tornar a Igreja publicamente relevante para católicos e não católicos”, diz Michele Dillon,Catolicismo Pós-Secular: Relevância e Renovação .

Apesar dos avanços evidentes, a extensão do papel da figura feminina na cúpula católica e permissão para que preencha cargo eclesiástico ainda é assunto tabu. O catolicismo é historicamente protagonizado por homens, sob o argumento teológico de que a Igreja é feita à imagem e semelhança de Jesus Cristo, que se cercou de doze apóstolos, todos do sexo masculino. “Esse pensamento reforça que o homem é a principal criação divina, enquanto outras formas de vida são menos dignas”, afirmou VEJA padre Anne, como faz questão de ser chamada uma das líderes do movimento pelo direito feminino à ordenação. As transformações na religião podem demorar séculos para serem efetivadas. “O Vaticano não tem pressão em acompanhar as mudanças sociais”, resume Victor Gama, historiador da religião da PUC Minas. A irmã Becquart sabe bem disso. “Não sou ingênua. Mas a faz resistência parte do processo”, pontua. Um passo de cada vez.

“Ganhamos voz”
Em meio a um périplo para visitar igreja no mundo todo, a religiosa Nathalie Becquart concedeu a seguinte entrevista a VEJA por videochamada.

Francisco já é o papa que mais promoveu mulheres na história da Igreja, mas especialistas dizem que a mudança ainda é tímida. Concorda?  Tamanha guinada de cultura não acontece de um dia para o outro, e o papai não é capaz de virar essa página sozinho. Temos muito avançado nos últimos tempos. É um tema que requer visão de longo prazo.

A senhora será a primeira mulher a votar no Sínodo dos Bispos, o grande encontro do Vaticano. Como planeja usar esse poder? Lutando para que mais mulheres cheguem a cargas de liderança. Ajudei a colocar a pauta à mesa como algo prioritário e isso, por si só, é um passo adiante relevante.

A distância entre a igreja e a sociedade moderna também estará em discussão?  Sim, estamos buscando criar um novo estilo de igreja, que é uma instituição ainda hierarquizada e fechada. Não podemos excluir ninguém. A participação feminina entra aí, assim como a da comunidade LGBTQIA+, dos jovens e de outras tantas vozes silenciadas.

Por décadas, clérigos ignoram e acobertam escândalos de abuso sexual. Como dar uma resposta efetiva para esta chaga?  A Santa Sé precisa ser mais eficaz ao escutar as vítimas e criar a manipulação de prevenção aos abusos. Francisco avançou muito, mas é preciso mexer mais fundo na ferida.

Como fazer com que as mulheres escalam a superioridade não apenas administrativa, mas também religiosa?  Por ora, isso não está em debate. A demanda vem de um grupo pequeno e é muito polarizante para ser aprovada. Mas existem várias maneiras de exercer o protagonismo na igreja, e o papai está fazendo o que pode. Teremos de esperar para ver.

VEJA

Postado em 19 de julho de 2023