Comissão para investigar crimes da ditadura divide a gestão Lula

Enquanto tenta estabelecer boas relações com as Forças Armadas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se vê no meio de um cabo de guerra em torno de um tema que causa arrepios no meio militar: a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP ). Familiares de pessoas que desapareceram na ditadura pressionaram pela retomada dos trabalhos, encerrados na gestão de Jair Bolsonaro. O movimento conta com o apoio do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania), que se mantém firme na ideia de reinstalar o colegiado no dia 25 de outubro, Dia da Democracia e dados do assassinato do jornalista Vladimir Herzog no DOI-Codi. Ao mesmo tempo, auxiliares do próprio governo, como o ministro José Múcio (Defesa), argumentaram que não se devem mexer nesse vespeiro no momento em que os militares estão acuados, com oficiais de alta patente na mira do Congresso, da PF e do STF por suspeitas de conspiração golpista.

A entrega de familiares de desaparecidos pela volta da Comissão intensificou-se a partir de 26 de junho, no Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, quando o grupo fez um manifesto público. Em agosto, divulgou carta a Lulana qual trata do “dever do Estado de se retratar, de forma digna, com familiares que perderam entes queridos, pelas mãos da violência perpetrada pelo terrorismo de Estado”. Publicamente, até que o governo fez alguns gestos no sentido da retomada do trabalho. No início de setembro, nos eventos de cinquenta anos do golpe no Chile, o ministro Flávio Dino (Justiça) reiterou o compromisso. Na prática, nada avançou. Almeida chegou a elaborar um ato normativo para recriar o Órgão, mas o documento espera ser avaliado pela Casa Civil, pela Justiça e pela Defesa. No fim do mês, Almeida e Múcio discutiram o caso, não chegaram a acordo e ficaram de conversar de novo.

A recriação da comissão é mais do que uma promessa de campanha de Lula. Trata-se de uma obrigação imposta por determinação judicial, que exige que o país dê continuidade até o encerramento dos trabalhos de identificação dos desaparecidos políticos e reconhecimento de que eles foram mortos por ação do Estado. Uma das frentes ainda abertas da comissão, instalada em 1995, é a da identificação das ossadas descobertas na Vala de Perus, em São Paulo, acondicionadas em 1 049 caixas no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp. “A CEMDP ainda se faz necessária, para que a justiça de transição de fatos ocorridos em nosso país”, diz a advogada Maria Cristina Batista, da ONG Tortura Nunca Mais.

Há muita dificuldade para saber qual é o número de vítimas da ditadura. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, apontou 243 desaparecidos, dos quais 35 foram localizados. Há estimativas de que esse número pode ser bem maior. Enquanto outros países, como a Argentina, acertaram há tempos a conta com esse período sombrio, o Brasil ainda convive com os fantasmas da ditadura. Enfrentar de uma vez por todo esse doloroso passado é uma condição para o país poder seguir em frente — e em paz.

VEJA

Postado em 9 de outubro de 2023