‘Arruinaram nossa vida. Nossa máxima prioridade é evitar uma catástrofe’, diz Milei em discurso de posse

Acompanhado por poucos chefes de Estado internacionais, entre eles o ucraniano Volodymyr Zelensky, o uruguaio Luis Lacalle Pou e o primeiro ministro da Hungria, Viktor Orbán, o líder da ultradireita argentino Javier Milei fez seu primeiro discurso como presidente e afirmou que “hoje encerramos uma longa e triste história de decadência e declínio, e começamos a reconstrução de nosso país”. Milei acusou seus antecessores de terem “arruinado nossas vidas”, e afirmou que a Argentina vive uma situação de emergência”.

— Estas eleições são um divisor de águas em nossa História, como foi o muro de Berlim — declarou o novo presidente argentino, que em seu primeiro pronunciamento ao país como chefe de Estado reiterou elementos importantes de suas falas como candidato, entre eles a defesa de uma política econômica liberal e o combate ao que Milei chama de “casta política”. A decisão de realizar seu discurso do lado de fora do Congresso foi um gesto que buscou reforçar sua conexão com sua base social e militante, e mostrar-se, justamente para essa base, como um presidente que não será abduzido pelo sistema político.

Mas, para formar seu Gabinete e seu governo, Milei teve de apelar a partidos tradicionais, inclusive ao próprio peronismo. Os dois principais aliados políticos do novo presidente são o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) e a nova ministra da Segurança, Patricia Bullrich. Essas alianças provocaram irritação dentro do partido do novo presidente, A Liberdade Avança, e os primeiros gestos de Milei buscaram derrubar as teorias de que antes mesmo da posse o novo presidente já fechou pactos com a casta que prometeu combater.

— Hoje enterramos décadas de fracassos, brigas e disputas sem sentido… No começo do século XX éramos a luz do Ocidente. Recebíamos de braços abertos milhões de imigrantes que escapavam de uma Europa devastada em busca de progresso. Lamentavelmente, nossos dirigentes decidiram abandonar o modelo [liberal] que tinha nos feito ricos e abraçar ideias de empobrecimento. Durante mais de 100 anos, os políticos insistiram em defender um modelo que só gerou pobreza, estagnação e miséria — disse o novo chefe de Estado argentino.

Como era esperado, o novo presidente disse que receberá uma herança econômica pesada de seu antecessor, Alberto Fernández, e fez questão de fazer uma radiografia detalhada do que chamou de “bombas”, que, segundo Milei, não lhe deixam outra opção a não ser implementar uma política de choque e um forte ajuste fiscal:

— Muito se falou sobre a herança que vamos receber, quero ser claro: nenhum governo recebeu uma herança como a que nós estamos recebendo. O kirchnerismo, que em seus inícios dizia que tinha superávit fiscal e externo, nos deixa déficits que representam 17% do PIB — disse o novo presidente.

Milei assegurou que “não existe solução viável [para a crise] que evite atacar o déficit fiscal. O novo presidente assegurou que o Banco Central deixará de emitir pesos para Financiar o Tesouro nacional, mas esclareceu que, mesmo deixando de emitir, o país terá inflação alta nos próximos 18 ou até 24 meses. Segundo Milei, se as medidas de ajuste não forem adotadas, a Argentina poderia ter uma inflação anual de 15.000%, em pouco tempo. Durante o discurso do novo presidente, seus seguidores gritavam “serra elétrica”, um dos símbolos de sua campanha eleitoral, e “liberdade”.

— Prefiro dizer uma verdade desconfortável, antes do que uma mentira confortável — frisou Milei.

O presidente eleito assegurou que atualmente a inflação mensal da Argentina está entre 20% e 40%, e acusou o governo de Fernández e da ex-vice-presidente Cristina Kirchner de terem “deixado plantada uma hiperinflação”.

— Arruinaram nossa vida. Nossa máxima prioridade é evitar uma catástrofe — enfatizou Milei, que também disse que a situação em matéria de segurança, saúde e educação é grave.

Sobre o aumento da insegurança no país, o novo presidente assegurou que a Argentina vive “um banho de sangue”.

— Cem anos de fracassos não se resolvem num dia, mas um dia temos de começar. E hoje é esse dia — declarou o novo presidente, que disse, várias vezes, que seu governo não tem alternativa a não ser aplicar uma política de choque e um forte ajuste fiscal.

Milei frisou, como se esperava, que os próximos meses serão duros, mencionou todas as dívidas que seu governo vai herdar e não tem recursos para pagar, mas falou, também, no início de “uma era de paz e prosperidade, de liberdade e progresso”, tentando transmitir esperança em meio a uma enxurrada de dados econômicos negativos. Sobre os compromissos que a Argentina deverá enfrentar no curto prazo, Milei mencionou dívidas do Banco Central e da companhia estatal de petróleo que chegam a US$ 25 bilhões, dívidas do Tesouro Nacional por um total de US$ 35 bilhões, dívidas por pagamentos a importações não saldados que atingem US$ 30 bilhões e e dívidas com empresas estrangeiras estimadas em US$ 10 bilhões, entre outras.

— Esta é a bomba em termos de dívida de cerca de US$ 100 bilhões, que devemos somar aos US$ 420 bilhões que o país já tinha. E, naturalmente, temos de somar os vencimentos da dívida de 2024, que chegam a cerca de US$ 90 bilhões, mais US$ 25 bilhões [de dívida] com organismos internacionais… Este começo será a última bebida amarga (expressão argentina), antes de começar a reconstrução da Argentina — disse o novo presidente,

Nos últimos dias, foi confirmada uma reunião entre o novo presidente e o ex-ministro da Economia, Sergio Massa, derrotado nas urnas por Milei. Segundo meios de comunicação locais, Milei pediu ajuda a Massa para negociar acordos financeiros com a China — país que atacou durante a campanha —, e também com o Fundo Monetário Internacional. O acordo com o Fundo precisa ser renegociado, e, segundo as informações publicadas pela imprensa argentina, Milei solicitou a Massa, inclusive, que um de seus colaboradores permaneça no cargo até que o entendimento seja selado. O primeiro discurso foi duro contra o governo que saiu, mas longe dos holofotes Milei conversou com seu ex-adversário, porque a situação, como o próprio presidente admitiu, é muito grave.

Sem uma coalizão de governo formada — e sustentado apenas por acordos informais —, Milei depende de acordos políticos para aprovar projetos de lei no Congresso. Por isso, sem abandonar o discurso antipolítica, o novo presidente fez acenos ao sistema político, que atacou durante toda sua campanha.

— Não vamos perseguir ninguém, nem discutir espaços de poder, nosso projeto não é de poder e sim de país. Não pedimos um acompanhamento cego, mas não vamos tolerar que a ambição de poder de alguns interfira na mudança que os argentinos votaram. Todos os que quiserem se unir serão recebidos com os braços abertos. Não importa de onde venham, o único que importa é para onde querem ir — declarou.

E acrescentou:

— Não vamos claudicar, recuar nem nos render. Vamos avançar com as mudanças que o país precisa. Só assim sairemos nos buraco no qual nos meteram —.

O novo presidente da Argentina encerrou seu discurso com o grito de guerra de sua campanha: “Viva a liberdade, caralho”. Minutos depois, se aproximou a alguns de seus apoiadores em frente à Praça do Congresso, para depois subir no carro oficial, mais uma vez ao lado de sua irmã, Karina Milei, para se dirigir à Casa Rosada. No Palácio Presidencial, Milei receberá delegações estrangeiras e serão empossados os oito ministros de seu gabinete.

GLOBO

Postado em 11 de dezembro de 2023