Água, luz, internet, TV e telefone: facções barram prestação de serviços no Rio

Depois de quatro anos trabalhando em uma empresa terceirizada que presta serviço para uma transmissão de TV e internet, o eletricista João (nome fictício) pediu missão há cerca de 40 dias. A gota d’água foi uma situação vivida por colegas que executavam um trabalho na rede da operadora na Avenida Pastor Martin Luther King Jr., na Pavuna. Obrigada por bandidos a ir a uma favela próxima, a equipe foi ameaçada e teve seu material roubado, sendo liberada após receber a ordem de não voltar.
— Nunca me pegaram, porque não questionava; eu vou embora. Mas passei muito susto. Às vezes, eu estava fazendo um reparo, paravam dois caras de moto, eu abordava no meio da rua, diziam que se eu não saísse me levassem para dentro da favela, que iriam matar, que a gente não está autorizada a trabalhar ali, que a área é deles, que vendem “gatonet” — conta João. — O que mais me aterrorizou é que levaram colegas da minha empresa. Eu falei: Não vou mais; não vou ficar correndo esse risco.

A ação de criminosos, inclusive no entorno das favelas, impacta a prestação de serviços públicos, amedronta técnicos e deixa consumidores sem atendimento. Segundo a Light e a Enel, bandidos chegam ao ponto de “sequestrarem” profissionais para que eles executem concertos não programados, muitas vezes em ligações clandestinas, atrasando as visitas agendadas.

‘Só com autorização’
Diante da violência, em janeiro, a Telefônica Brasil (Vivo) enviou em ofício para o 18º BPM (Jacarepaguá) uma lista de 12 vias onde se pretendia passar fibra ótica. Para executar o projeto, queria saber se os endereços eram áreas de risco. E lembrou “histórico de impedimento de acesso por criminosos da Cidade de Deus”. Em resposta, o comando do batalhão informou que sete das ruas ficam dentro da Cidade de Deus, “que é uma área conflagrada e dominada pela facção Comando Vermelho”.

— Podemos dar segurança para a Vivo fazer as instalações, mas sairemos em algum momento, e o tráfico pode arrebentar tudo, se não for do interesse dele. Talvez a Cidade de Deus seja uma das áreas mais perigosas hoje do Rio, ainda mais que está em guerra com a Gardênia — afirma o tenente-coronel Lourival do Nascimento Júnior, que comandou o 18º BPM.

Na energia, a Enel Rio — que atende 66 municípios, entre eles Niterói, São Gonçalo, Caxias e Magé — viu o número de clientes em áreas com restrição operacional subir de 74 mil, em 2004, para 472 mil, em 2023, um crescimento de 538%. Esse universo representa 15% de toda a base de clientes da distribuidora e é responsável por metade do volume de energia desviada na área de concessão da empresa.

Segundo o diretor de Operação de Redes da Enel Rio, José Luis Salas, as dificuldades para trabalhar em determinados locais resultaram da implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na capital, a partir de 2008, quando os bandidos passaram a migrar para outros municípios. E o problema foi se agravando.

— Só entramos nessas áreas com autorização. Temos 200 líderes comunitários que nos ajudam. Mesmo assim, só recebemos autorização para fazer manutenção, ou seja: quando a comunidade for afetada. Nunca em caso de perda de energia (o chamado “gato”) ou para fazer um corte por falta de pagamento — lamenta Salas.

Os episódios de intimidação acontecem. Na última segunda-feira, no bairro Santo Aleixo, vizinho a uma área de risco de Magé, uma equipe da Enel foi ameaçada com pistola, durante operação de rotina para detectar ligações clandestinas. A ação do bandido foi filmada pela câmera instalada na viatura da empresa. O homem conversa com um técnico e, depois, entra em casa e sai com a arma na mão, para impedir que o “gato” se desfaça.

Nem o Natal foi poupado. Cerca de 25 mil clientes de Maricá passaram a noite sem energia, porque os traficantes da Favela da Linha só autorizaram a entrada da Enel para fazer reparos numa rede de transmissão às 6h do dia 25. A falta de luz não afetou os moradores da comunidade.

— O nosso dia a dia é assim. Em 18 de novembro (houve um temporal e vários municípios ficaram um fim de semana sem luz), por exemplo, alguns veículos “sequestrados” para fazer reparos dentro de comunidades — recorda Salas, acrescentando que a orientação da empresa é o trabalhador se retirar quando há risco.

Sem dar detalhes, a Light diz que “tem restrição de operação em boa parte de sua área de concessão”. Cresce que “a situação se agrava com a rivalidade em regiões violentas e dominadas por poderes paralelos que, quando estão em conflito, não podem ser atendidas pela entrega para proteger a vida de colaboradores e moradores”.

Já a Rioluz afirma que, “quando não há operação policial”, seus empregados “não encontram dificuldades na execução dos serviços” nas favelas. A explicação, diz a companhia, é o pré-agendamento feito com associações de moradores. Mas a companhia contabilização perdas: desde outubro de 2020, 102 estimativas foram avariadas por tiros.

Nos últimos tempos, o aposentado Antônio (nome fictício), de 67 anos, tem ficado pelo menos duas vezes por mês sem telefone, internet e TV. Ele é morador da Rua Espírito Santo, na Praça Seca, próximo às favelas São José Operário e do Fubá, disputadas entre tráfico e milícia:

— Ao acessar o aplicativo da Claro para pedir reparo, há uma mensagem informando que estou sem sinal e que os técnicos não podem ir ao local realizar o conserto devido à violência. A Praça Seca sofre com tiroteios quase que diários. Então, além de não poder sair de casa, também não posso fazer nada dentro dela.

Quatro dias sem sinal
Outro morador da Praça Seca, Daniel (nome fictício) conta que na Rua Albano, vizinha à favela Bateau Mouche, ficou quatro dias sem sinal de internet em janeiro. Ele, que estava pensando em se mudar por conta da distância do trabalho, no Centro, agora tomou a decisão definitiva de sair do bairro, onde vive há três anos.

— Descobri que a internet estava sendo cortada para as pessoas continuarem paralelamente. O meu prédio é a última rua com sinal da operadora. Quando caiu na internet, uma mensagem apareceu automaticamente no aplicativo. Por telefone, um atendente disse que os técnicos estavam recebendo ameaças caso fossem restabelecer o serviço — recorda.

A Conexis, que representa o setor de teles, não tem números. Contudo, verifica-se que, em alguns locais, o problema de roubo e vandalismo “se soma ao bloqueio de acesso das equipes das prestadoras para a manutenção dos seus equipamentos”.

Quanto às transportadoras de saneamento, a Águas do Rio ressalta que “procura desenvolver uma relação de parceria com lideranças comunitárias”. Porém, observe que enfrenta dificuldades operacionais, devido a furtos. E que “operações policiais ou outros eventos de segurança obrigam a fornecer a reprogramação de vários serviços e paralisar a atuação das equipes, impactando o cronograma de projetos e obras previstas”.

A Iguá confirma que suas atividades, “em alguns momentos, são afetadas por questões de falta de segurança” e que prioriza a integridade de seus funcionários. A Rio+Saneamento se limitou a dizer que segue o cronograma previsto.

A PM afirma que tem se reunido com representantes de entregas e trabalhadores em conjunto com a Polícia Civil, “propiciando uma rede de purificação que visa identificar e localizar os envolvidos e tais organizações criminosas”. Pede ainda a colaboração da população acionando a central 190 e o Disque-Denúncia (2253-1177).

O GLOBO

Postado em 11 de março de 2024