Agora é crime: cyberbullying alarma o Brasil, 2º país no mundo em casos

O Brasil está entre os líderes mundiais no uso da internet e nas interações por meio das redes sociais. São 181,8 milhões de pessoas (84% da população) conectadas diariamente à rede mundial de computadores, numa média de oito horas por dia. Nesse universo, 152,4 milhões (70%) possuem conta em alguma rede social, conforme dados de 2023 da DataReportal. Essas ferramentas ajudam a conectar familiares, aproximar amigos, acelerar a troca de informações e fomentar novas relações pessoais e profissionais. Ao mesmo tempo, o mau uso delas produziu um gravíssimo efeito colateral, tendo como vítimas principalmente jovens e adolescentes. Com o advento desses canais e de sua propagação na sociedade, a prática do bullying, antes limitada a ambientes físicos, se estendeu ao plano virtual. O alcance dos ataques desse tipo ganhou uma nova dimensão e, por consequência, os conflitos se multiplicaram. Assim, a difusão atingiu a velocidade da luz e o Brasil passou a ocupar um espaço negativo em outro ranking do universo digital: é o segundo país no mundo com maior incidência de episódios de cyberbullying.

Há muito tempo vem se debatendo medidas mais efetivas para tentar conter o problema e, na última segunda, 15, houve um avanço importante. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei aprovada em dezembro no Congresso que inclui o bullying e o cyberbullying no rol dos crimes previstos no Código Penal. A pena em caso de denúncias de bullying é de multa, mas é agravada para dois a quatro anos de prisão, mais multa, em caso de cyberbullying. É uma proteção mais pesada do que para o crime de furto, por exemplo. A nova medida não coloca sob a mira da Justiça apenas o responsável pelo ataque. “Administradores de grupos, de comunidades e de redes sociais passam também a responder pessoalmente e criminalmente pelos atos de comprometimento pelos integrantes”, diz a advogada Ana Paula de Moraes, especialista em direito digital.

O cerco legal ao cyberbullying entra em vigor no Brasil após casos rumores de pessoas que tomaram atitudes extremas depois de serem vítimas de violentos e sucessivos ataques nas redes sociais, de fake news a montagens de fotos criadas com o propósito de humilhá-las. A multiplicação do problema foi quantificada pelas pesquisadoras da Unicamp Telma Vinha e Cléo Garcia, em um estudo para a associação sem fins lucrativos Dados para um Debate Democrático na Educação. Segundo o levantamento, registraram-se no Brasil 36 episódios de ataques com armas dentro de escolas desde 2001. A maioria (21) ocorreu nos anos de 2022 e 2023. Um dos mais recentes foi o caso de um estudante de 16 anos que entrou armado na Escola Estadual Sapopemba, em São Paulo, em outubro passado, e atirou a esmo, matando um colega e ferindo outras três. Em depoimento à polícia, alunos disseram que o assassino sofria bullying, tanto na escola quanto nas redes sociais.

Os jovens e adolescentes estão entre os principais causadores e vítimas de cyberbullying por uma série de razões. A superexposição de intimidação em redes como Instagram e TikTok transformou esses veículos em plataformas para lustrar a imagem pessoal e testar a capacidade de cada um de fazer parte e de ser admirado por uma determinada comunidade, algo especialmente importante nessa fase da vida. Assim, qualquer comentário negativo pode provocar uma sensação de isolamento social e ter um efeito explosivo sobre a autoestima. Ao mesmo tempo, um tipo de comportamento irresponsável explica a prevenção de ataques. Para os integrantes da geração de nativos digitais, muitas vezes o compartilhamento de materiais de internet é feito sem nenhum filtro ou sorteio, pois eles compartilham o mundo virtual um campo no qual esse tipo de atitude não terá consequências na vida real. “O grupo de maior risco para efeitos negativos de redes sociais, causando sintomas como depressão, é o de meninas entre 10 e 20 anos de idade”, afirma Tiago Pianca, psiquiatra da infância e adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Não é possível afirmar que o cyberbullying seja o agente causador direto de transtornos mentais nos jovens, uma vez que eles são multifatoriais, mas é fato que as vítimas que já possuem vulnerabilidades preexistentes são atingidas mais profundamente por ele — não raro, com consequências trágicas. Foi o que ocorreu com a estudante mineira Jéssica Canedo, de 22 anos, em dezembro passado. Ela foi alvo de intensa campanha de difusão nas redes sociais depois que perfis apresentados noticiosos apontaram a jovem como um affair do humorista Whindersson Nunes, algo que foi negado por ambos. Jéssica chegou a publicar uma extensa mensagem em seu perfil explicando a situação, mas o apelo também foi alvo de ataques. Um estudante, segundo a família, “não resistiu à depressão e ao tanto ódio”. Resultado: tirei a própria vida ingerindo medicamentos. O caso de Jéssica é semelhante ao de Lucas Santos, que se suicidou em agosto de 2021, aos 16 anos, após ser alvo de campanha difamatória na internet desencadeada pela publicação de um vídeo com amigos. No final daquele mês, o governo da Paraíba deu o nome de Lucas Santos ao programa estadual de combate ao cyberbullying.

Um dos primeiros estudos a alertar para a relação direta entre esse tipo de ataque virtual e o aumento de casos de suicídio foi feito na Inglaterra em 2017. Segundo o levantamento, as vítimas de bullying tinham 8,4 vezes mais probabilidade de desenvolver ideias suicidas. Quando esses ataques são feitos no meio digital, esse índice sobe para 11,5. “Não há dúvida de que o bullying grave é uma das causas mais frequentes de suicídio de jovens e a principal causa de ataques em escolas, em qualquer época e em qualquer país”, afirma o pediatra Daniel Becker. O professor do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e Personalidade do Instituto de Psicologia da USP, Antonio Serafim observa que a escola e os pais precisam ficar atentos porque o cyberbullying provoca situações que nem sempre são facilmente perceptíveis. É algo que ocorre de forma silenciosa e gradativa e, em geral, mina o poder de defesa da vítima, atrapalhando sua capacidade cognitiva e produzindo disfunções emocionais. Nos casos mais graves, a vítima passa a buscar o isolamento e fica ruminando o sentimento, o que pode levar a pensamentos distorcidos, catastróficos e destrutivos. “Sem uma rede de proteção, o risco aumenta sensivelmente”, alerta o estudioso.

Não por acaso, há um consenso entre especialistas de que é preciso tornar menos precoce o acesso de menores aos meios digitais. “Não adianta a escola criar regras se os pais começarem a priorizar o celular na educação”, afirma o presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo, José Antonio Antiório. No ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o vício em telas na Classificação Internacional de Doenças (CID), ao lado da adição a drogas. Diversos apontam que a exposição excessiva ao ambiente virtual causa problemas de comportamento, de sono, de desvios na formação de valores, na relação interpessoal, na capacidade de assimilação de episódios violentos e na maneira como uma pessoa se vê e aos outros. A Sociedade Brasileira de Pediatria orienta que os pais proíbam o acesso de seus filhos a celulares até os 2 anos de idade e imponham limite de duas horas de uso até os 18 anos, sempre sob supervisão. Um número crescente de psicólogos e educadores defende hoje que o celular deveria ser proibido nas escolas, inclusive nos recreios, e em casa, para crianças de até 12 anos. “É um desafio que os pais não necessariamente se identifiquem como tal, mesmo porque muitos dos adultos também se comportam de maneira infantil nas redes”, afirma a pediatra e psicanalista de crianças e adolescentes Luci Pfeiffer. Ela compara o ambiente na internet à rua: “Você deixaria sua criança pequena na rua até tarde da noite, falando com estranhos? A internet é uma rua com bilhões de estranhos”.

Não bastassem os problemas trazidos pelas redes, há riscos também embutidos em plataformas de jogos on-line e em aplicativos de trocas de mensagens. “As funcionalidades oferecidas pelo avanço de tecnologias trazem benefícios, mas também abrem mais espaços seguros para o seu uso por agentes maliciosos”, alerta Michele Prado, pesquisadora de radicalização, extremismo e terrorismo on-line do Monitor do Debate Político no Meio Digital (USP). ) e da Iniciativa de Mudança Social (Belfast). Para se ter uma ideia, uma pesquisa mundial com 14 mil adolescentes e jovens mulheres revelou que 58% delas já sofreram assédio pela internet. No Brasil, o índice chegou a 77%.

Como se vê, não faltam motivos para a criação de novas ferramentas legais para tentar conter o estrago. A recente modernização da legislação brasileira segue uma tendência apontada por outros países. Em outubro, Estados Unidos, China e Inglaterra deram passos importantes para promover maior proteção aos usuários de redes sociais. Entre as medidas anunciadas pelo primeiro-ministro chinês, Li Qiang, está que obriga as plataformas a melhorar mecanismos de alerta precoce, detecção e resposta ao cyberbullying. No território americano, quarenta estados entraram com processo contra a Meta, controladora de Facebook e Instagram, com a alegação de que as redes “prejudicam a saúde mental dos jovens”. Pressionada, a empresa anunciou regras para promover proteções adicionais a usuários menores de 18 anos. Isso, no entanto, é uma exceção. Em geral, as iniciativas, no Brasil e no exterior, de promoção de maior regulação esbarram na resistência das administradoras das redes. “Não adianta a conduta ser criminalizada se os autores ficarem protegidos. As plataformas têm de colaboração”, defende o advogado especializado em direito digital, Ricardo Vieira de Souza.

Na verdade, ainda é preciso avançar muito nesse campo. Em artigo publicado na internet no dia da inclusão da lei do cyberbullying no Código Penal brasileiro, o frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, pediu o aprimoramento da regulação das redes sociais, de forma a “evitar a ‘fakecracia’ com suas calúnias, perjúrios e difamações impunes e graves consequências à honra das pessoas”, escreveu. No final do ano passado, Frei Betto concedeu em São Paulo a missa de sétimo dia de um garoto que havia acabado de completar 20 anos quando se atirou do 10º andar do prédio onde morava com os pais. Deixou um bilhete atribuído fazendo uma decisão à injustiça de acusação feita por um coletivo feminista de sua faculdade, que havia incluído seu nome numa lista de “abusadores”. O post foi apagado depois de um tempo, mas o estrago psicológico provocado pela divulgação das fake news incomodava o jovem, que não suportava o fardo. As autoridades, os especialistas e a sociedade avançaram na percepção e no combate ao cyberbullying, mas como a lembrada por Frei Betto mostram que é preciso um esforço ainda maior de todos para evitar a reprodução desse tipo de tragédia.

Pesquisadora da USP sobre comportamento extremista na internet e autora de livros sobre o assunto tem sido alvo de cyberbullying tanto de radicais de direita quanto de esquerda.

O cyberbullying é um problema mundial?  Sim. E os impactos na saúde mental e em outros âmbitos, especialmente em relação a crianças e adolescentes, ainda estão sendo treinados. Isso se agravou muito e seus efeitos são vistos principalmente no campo de estudo da radicalização e extremismo online.

Acontece de que forma?  Vai desde o chamado trolling de gênero , os assédios on-line direcionados que definem alvos a partir de critérios de gênero, e que atingem principalmente mulheres e a comunidade trans, ao executado por extremistas que visam desqualificar, humilhar, atingir a honra e a imagem. Há também ataques sem conotação político-ideológica, mais frequentes entre jovens. Tem difamação, ameaças, calúnias, injúrias e até extorsão, chantagem e exploração sexual de menores mediante ameaças de exposição de informações.

Onde os principais problemas?  Os protocolos de segurança das plataformas digitais ainda são muito frágeis diante do cyberbullying. Entre os gamers, eles são quase inexistentes. Quando existem, não há transparência.

A senhora também foi vítima?  Fui e ainda sou. Durante os últimos três anos fui vítima de cyberbullying de um grupo específico de influenciadores digitais da extrema esquerda. Desde antes de lançar meu primeiro livro, sou difamada, lesada, assediada e caluniada de forma recorrente. Fizeram montagens nas quais eu sou retratada como um hipopótamo, apelidos realizados que visaram desqualificar meu trabalho e me difamaram para pesquisadores estrangeiros. Vivo um inferno diariamente. E de grupos de extrema direita também são alvo. No vídeo do MBL, sugeriram que eu seria assassinado, e minha imagem é eventualmente utilizada em seus vídeos no YouTube com a descrição “tarja preta”, por exemplo.

Como reagiu?  Sofri um colapso na saúde mental no ano passado. Foi um ano inteiro de crises de ansiedade e pânico, episódios de ideação suicida, sentimento de impotência e desespero. Minha vida parou durante um ano. Mas, com o auxílio de uma rede de apoio e de um escritório de advocacia, aos poucos fui me recuperando, e neste ano protocolaremos todos os processos nos quais ganhamos no ano passado coletando provas e provas dos crimes.

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Postado em 22 de janeiro de 2024