25 anos de tecnologias: inovações e desafios de uma política de sucesso

Todo remédio tem de chegar onde o povo está. Eis um dos princípios que, em 1999 — durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, com José Serra no posto de ministro da Saúde —, nortearam a implantação de um novo modelo de fornecimento de medicamentos para garantir o acesso a tratamentos para doenças prevalentes de uma forma mais ampla e sustentável no país. Após a aprovação de uma lei, os chamados “genéricos” estrearam com a proposta de manter a eficácia e a segurança dos produtos originais de marca, mas custando muito menos para o paciente e o sistema. Dá-se o barateamento por eles serem “cópias” e, portanto, dispensarem gastos excessivos com pesquisa. É um projeto de propagação da medicina que, 25 anos depois, tem ajudado a ampliar a qualidade e a expectativa de vida de boa parte dos brasileiros.

O conceito dos genéricos foi concebido nos anos 1960 nos Estados Unidos. Mas só decolou realmente duas décadas depois como um meio de expansão o uso de medicamentos no dia a dia pelo simples fato de serem no mínimo 35% mais baratos que os produtos de referência. A ideia, felizmente, veio no Brasil. Com 4 341 produtos registrados na Anvisa e outros 299 em avaliação, o país consolidou um sistema de produção e distribuição de genéricos com a participação dos setores públicos e privados e se prepara para outro movimento, a expansão dos biossimilares, medicamentos obtidos de células vivas que , inspirados nas versões biológicas originais, poderão aumentar a oferta de tratamentos contra o câncer e doenças reumáticas, por exemplo.

O surgimento dos genéricos aqueceu o mercado farmacêutico e trouxe a perspectiva de levar comprimidos a grupos socioeconomicamente mais vulneráveis, dependentes do SUS e sem condições de comprar medicamentos de marca nas farmácias. Para eles, seguir o tratamento contínuo a fim de controlar condições como hipertensão e diabetes passaria a caber no orçamento. “Foi uma inovação crucial junto à população, uma das grandes realizações que deram certo no Brasil”, diz José Serra, o ministro responsável pela introdução da categoria.

O tempo aplacou as desconfianças. “É possível trocar o original por uma cópia com a garantia de que ela é tão segura e eficaz dos dados dos testes que são feitos”, afirma Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. No novo glossário ( leia no quadro ), consultei as definições de medicamentos de referência (apresentados com nome comercial e fabricante, cujas fórmulas caíram em domínio público) e de similares (com princípios ativos idênticos e comprovadamente eficazes, mas que precisariam ainda demonstrar ação eficaz ).

Às vésperas dos anos 2000, com a internet ainda longe dos celulares, a desinformação não era difusa em massa, mas os genéricos não escaparam de distorções e preconceitos de médicos e pacientes. A ideia mais alardeada era de que aquelas caixas contendo apenas o nome do princípio ativo não produziam os mesmos efeitos contra as doenças que os remédios consolidados no mercado. Seriam “mais fracos”, continham mais efeitos colaterais. Bobagem. Nos consultórios, alguns profissionais mostraram resistência e continuaram especificando as versões mais famosas. Mas a adoção em larga escala em um país com um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo logo mostrou que era um caminho sem volta. Atualmente, os genéricos oferecem alternativas em mais de 800 frequências terapêuticas — de colesterol alto para infecção bacteriana.

A transição para a tecnologia leva em consideração a quebra da patente do produto de marca, que ocorre vinte anos depois do lançamento, e os testes realizados para comprovar a equivalência, um método consolidado e considerado trivial quando se trata de componentes químicos. O desafio, daqui para frente, é desenvolver métodos menos burocráticos para agilizar a integração de medicamentos biossimilares, que já têm espaço na medicina para demonstrarem eficácia. Diferentemente de um genérico, obtido sinteticamente, biossimilares emulam os originais biológicos, oriundos de culturas de células em laboratório. São exemplos a insulina e os anticorpos monoclonais.

Um estudo do centro de pesquisa Rand Corporation, nos EUA, estima que, no período de 2021 a 2025, a adesão a esses remédios pode resultar na redução dos preços das versões de referência e em uma economia de 38,4 a 124,5 bilhões de dólares. A expansão da categoria também significa mais acesso a tratamentos inovadores entre pacientes com tumores, distúrbios autoimunes etc. “Sabemos que vários produtos biológicos trouxeram revoluções para o tratamento de doenças, como o câncer, e existem aqueles que têm uma patente expirada em breve”, diz Hugo Defendi, gerente de portfólio de P&D de Bio-Manguinhos, da Fiocruz. “Os genéricos ensinaram como é importante ter essa via regulatória.” O portfólio atual da instituição contém cinco biossimilares desenvolvidos por meio de transferência de tecnologia, que já são fornecidos para o SUS, e outros três estão em fase de elaboração, todos focados em oncologia e na reumatologia.

Um dos gargalos para agilizar a adoção de biossimilares é uma avaliação para verificar se eles se equiparam aos medicamentos biológicos pioneiros. Com a legislação vigente, é necessário fazer análises com o rigor dos ensaios clínicos para atestar a tal bioequivalência. Em setembro do ano passado, a Anvisa aprovou uma consulta pública para tentar simplificar o processo e até dispensar algumas etapas. “Com o advento das tecnologias, não é necessário fazer estudos clínicos de eficácia e segurança para todo biossimilar”, afirma Defendi.

Outra questão diz respeito à criação dessas e outras terapias dentro do território nacional, o que passa pelo investimento e estabelecimento do complexo econômico-industrial da saúde, ideia que vem sendo gestada, com mais ou menos prioridade, há anos. “O Brasil deve ter um ambiente adequado à inovação. É importante desenvolver universidades e centros de pesquisa na busca por medicamentos inovadores”, diz Renato Porto, presidente-executivo da Interfarma. É uma fórmula para não sofrer com o desabastecimento de remédios e o descontrole de uma legião de doenças. É uma das receitas da democratização da saúde.

Os estudos da última década envolvendo os genéricos apontam que os custos dos medicamentos representam o denominador que mais onera as despesas de cuidados com a saúde — despesas crescentes, diga-se. Uma robusta revisão de pesquisas que analisou a política em oito países mostrou que os governos defendem a adoção dos genéricos como forma de enfrentar a escalada dos custos. Além dos mais baratos para a população em geral, eles têm a vantagem de poder integrar políticas governamentais com ampla oferta para a sociedade.

No Brasil, sua inclusão no serviço público tem como bandeira o programa Aqui Tem Farmácia Popular, com oferta de 39 remédios para o tratamento de dez doenças comuns e gratuidade completa para beneficiários do Bolsa Família . Também são isentos de pagamentos anticoncepcionais, medicamentos para osteoporose destinados a mulheres, fraldas geriátricas e, desde o início do ano, absorventes para o período menstrual.

O governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro , previa cortes de 59% no programa em 2023, mas houve recomposição do orçamento pelo Congresso Nacional e o investimento planejado para 2024 é de 5,4 bilhões de reais. No ano passado, 22 milhões de pessoas foram atendidas. Segundo o Ministério da Saúde, foi reaberto o credenciamento de novas farmácias em 811 municípios que não contavam com a iniciativa, com prioridade para regiões de alta vulnerabilidade, de pobreza extrema.

Apesar da existência do programa, especialistas avaliam que o Brasil ainda precisa de uma política de oferta de remédios com a mesma robustez do bem sucedido SUS. “Temos projetos com alcance parcial, como o Farmácia Popular, e o completo de medicamentos de alto custo. No caso dos planos de saúde, não há comprometimento com o fornecimento de soluções”, diz Gonzalo Vecina, professor da USP. “E não adianta diagnosticar e não tratar.”

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Postado em 4 de março de 2024